quinta-feira, 27 de abril de 2017

Roteiro Sentimental de Viçosa do Ceará por José Mapurunga

O escritor José Mapurunga lança neste sábado (29/4) o livro Roteiro Sentimental de Viçosa do Ceará, na própria Viçosa do Ceará, terra natal do autor. O evento ocorrerá no histórico Teatro Pedro II (tema de capítulo do livro), às 19h30, numa promoção da Secretaria Municipal de Cultura e Meio Ambiente viçosense, tendo à frente o secretário Aníbal José Sousa.  O prefeito José  Firmino  de Arruda deverá estar presente ao acontecimento que reunirá outras autoridades, intelectuais, pesquisadores, lideranças  do município e convidados.
     O livro já havia sido lançado em Fortaleza no último dia 14 de fevereiro, no auditório Murilo Aguiar da Assembleia Legislativa do Estado, em acontecimento prestigiado por escritores, integrantes da colônia de Viçosa do Ceará radicada na capital cearense, amigos e admiradores do trabalho de José Mapurunga, autor de mais de 20 peças teatrais, entre as quais Farsa da Panelada, Auto da Camisinha e Auto do Rei Leal.
     Roteiros e guias sentimentais de cidades e outros lugares sempre são leitura atraente, mas, quando burilados pelas mãos de escritores e poetas, tornam-se ainda mais valiosos. É o caso do Roteiro Sentimental de Viçosa do Ceará, escrito pelo poeta, escritor e dramaturgo José Mapurunga, meu amigo e antigo companheiro das lutas estudantis do ano mágico de 1968.
     O autor mergulha na história, geografia, flora, fauna, culinária, arquitetura religiosa, narrativas reais e lendas populares de Viçosa do Ceará, sua terra natal, sempre lembrada por ele em seus escritos anteriores e em conversas com amigos. Agora, essas lembranças e pesquisas transformam-se em livro, mais um ponto marcante na trajetória de José Mapurunga.
Writing a poem is discovering (“Escrever um poema é descobrir”, dizia o poeta norte-americano Robert Frost). Nessa viagem sentimental através de séculos e décadas, Mapurunga faz interessantes descobertas.  Vêm à tona histórias  - algumas alegres e curiosas, outras tenebrosas – ouvidas pelo menino Mapurunga  dos  seus pais, avós, tios avós e outras figuras marcantes da cidade. O texto tem a forma de prosa, mas com toque poético, criativo e mesclado, aqui e acolá, com o humor discreto do autor. A ordem alfabética dos assuntos (ou verbetes) possibilita ao leitor iniciar o livro pelo tema que julgar mais interessante.
Com 262 páginas, Roteiro Sentimental de Viçosa do Ceará foi editado e impresso pela Expressão Gráfica e Editora. A foto da capa, de Daniel Carneiro, lembra paisagem europeia, mas retrata fenômeno típico de Viçosa: um denso nevoeiro e árvores seculares, com um homem abrigado por um guarda-chuva. O design da capa é de Natália Mapurunga e Gilberlânio Rios. A coordenação editorial é de Daniel Monteiro.
Transcrevo trechos de alguns capítulos do livro para dar uma ideia da dimensão do trabalho de José Mapurunga:
Assombrações
No passado, quando o motor da luz dava dois sinais antes deixar as ruas de Viçosa na mais completa escuridão, nove horas da noite, as almas penadas tinham licença para assombrar os vivos. Frequentes eram as noites em que elas apareciam. Visagens e vivos eram vizinhos. Mesmo dentro de casa, alta madrugada, sempre havia alguém tremendo de medo, ouvindo nitidamente pisadas estranhas sobre as pedras toscas que pavimentavam as Ruas. Ou ouviam pisadas semelhantes de alguém que já havia morrido. Coisas assim que arrepiavam os mais descrentes... A chegada da energia de Paulo Afonso, no final da década de 60, expulsou a maior parte desses entes do além, que então se refugiaram nos sítios, nas proximidades de pequenos cemitérios avoengos, no meio do mato, pertinho das capelas familiares onde repousam os ossos de ancestrais teimosos em não largar o que amaram em vida.

Cachaça
... Meu tio Chico Caldas, entusiasta da cachaça viçosense, comprava regularmente os melhores exemplares produzidos e envelhecidos em toda região. Aos amigos que adentravam na sua casa servia doses em copinho de vidro. Aos visitantes, presenteava com litros do produto, o que muito ajudou a construir a fama da cachaça artesanal produzida em Viçosa.
Enéas Cavalcante, no seu livro de memórias denominado Evocações fala de engenhos de cachaça da passagem do século 19 para o 20: o do seu avô Mariano Lopes, no sítio Bananeiras, e na fábrica de Cândido do Espírito Magalhães, no Careta. Enéas também insinua que até o vigário José Ferreira da Ponte, que esteve à frente da paróquia entre 1905 e 1910, mantinha fabriqueta de cachaça no Sítio da Santa, o Catinguba, hoje um bairro da cidade.
Cauim
É uma bebida alcoólica de origem ameríndia, feita em todo o Brasil, usando-se como matéria prima mandioca...  Macaxeiras eram descascadas e cozinhadas em caldeirões de barro. Cozidas e quase esfriadas, eram mastigadas por moças índias, que sentadas no chão, iam pondo a massa, já bem pastosa, em outras vasilhas. Depois, colocavam a massa em caldeirões com água, para nova fervura. Em seguida, punham o líquido resultante em potes, que eram bem fechados e enterrados até o meio, dentro das cabanas. Daí a dois dias a fermentação estava completa e o cauim pronto para ser bebido até a última gota. Primeiro era necessário que lhe fosse retirado, com uma peneira fina, o cabeço, uma nata que se formava no processo de fermentação da bebida. Pará que a bebida não estragasse tanto a mastigação da macaxeira quanto a retirada do cabeço deveriam ser feitos, exclusivamente, por moças virgens.
Culinária
As avós viçosenses repetem ainda hoje as antiquíssimas receitas que aprenderam com suas avós. Iguarias venerandas, apreciadas por pessoas de todas as idades e ensinadas às novas gerações. Viçosense morando em outros lugares, vez por outra, mata a saudade se deliciando com velhas pratos viçosenses, como a mui estimada Carne Seca com banana verde. Viçosense longe de sua terra adora receber petas de goma, bolinhos crocantes e doces que aprendeu a gostar quando criança. O afetivo paladar quer se sentir no aconchego de Viçosa.
No livro, José Mapurunga dá a receita das seguintes iguarias: bolinhos de goma, bolo de milho na pedra, carne seca com banana verde, esquecidos, doce de buriti, doce de jaca em calda, doce de jaca em massa, doce de laranja da terra.
Diabo Grande
Jurupariaçu na língua tupi. Principal da aldeia indígena da Ibiapaba onde padre Francisco Pinto e padre Luiz Figueira ficaram durante quatro meses, de setembro do ano de 1607 e até 11 de janeiro de 160. Enquanto estiveram em Ibiapaba, catequizaram os índios e fizeram negociações com tribos hostis, visando a abertura de um caminho por terra para o Maranhão. Antes, em 1604, aliado dos franceses, Diabo Grande participou da resistência ao avanço de Pedro Coelho. No livro intitulado Viçosa do Ceará – Notícias Esparsas, o autor, Joao Otávio Siqueira, diz: o padre francês Yves d´verteu, em sua viagem ao Norte do Brasil, pretende que o chefe indígena Jurupariaçu, o Diabo Grande, era filho de um conterrâneo seu com uma nativa tabajara.”
Igreja do Céu
Mesmo antes de ali haver um igreja, o local era conhecido como Morro do Céu. No romance Iracema, de José de Alencar, escritor propenso a criar lendas, tem nota de rodapé afirmando que no Morro do Céu nasceu o índio Felipe Camarão, herói das guerras contra a Invasão Holandesa...A estátua do Cristo na torre da Igreja foi esculpida pelo italiano Agostinho Balmes Odísio, que fora aluno de Rodin, famoso escultor francês...Quando criança e adolescente subi inúmeras vezes a escadaria para cegar à igrejinha e em cima deslumbra-se com uma paisagem de tirar o fôlego.
Igreja Matriz
A Igreja Matriz é hoje tombada pelo IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A inauguração se deu a 15 de agosto de 1700, pelo então superior dos jesuítas na Aldeia da Ibiapaba, padre Ascenso Gago.
Mapurunga discorre sobre as imagens de Santa Ana, de Nossa Senhora da Cabeça e se detém na descrição dos impressionantes painéis da Igreja da Matriz:
Um dos elementos importantes da Igreja Matriz de Viçosa é o forro do altar-mor, onde estão pintados 12 estranhos painéis. Quando criança, eu me distraía da missa para contemplar essas pinturas místicas, a imaginar histórias a partir do que eu via. Toda vez que vou a Viçosa os contemplo. Para Antônio Bezerra, eram inspirados em motivos bíblicos. Para o arquiteto Liberal de Castro, simbolizam virtudes cardeais, virtudes teologais e sentidos humanos. Sobre a autoria das pinturas, não existem pistas, apenas perguntas: seria algum padre ou irmão leigo da Copanhia de Jesus? Seria serviço contratado a terceiros pelos padres da Aldeia da Ibiapaba?
Matança da Tabatinga
Crime acontecido no sítio Tabatinga, distante sete quilômetros da cidade de Viçosa, em propriedade pertencente ao major Inácio José Correia, o Macaxeira. Eram 7 horas da noite do dia 6 de outubro de 17 quando a casa grande do major José Inácio (onde hoje é o engenho de cana do major Raimundo Nestor Mapurunga) foi assaltada por membros de uma família que residia nas proximidades. O ataque foi comandado por Francisco Gonçalves da Costa, o “Velho Juriti”.
José Mapurunga relata que foram trucidadas 19 pessoas na chacina e cita os nomes das vítimas, entre as quais mulheres e crianças, pessoas da família do major Inácio, serviçais e vizinhos que tentaram defende-los. O major Inácio, paralítico, foi retirado do local antes da tragédia, mas seus familiares não escaparam à sanha dos inimigos.
Zé Músico
No final da década 1960, a energia de Paulo Afonso chegou a Viçosa, mas a iluminação pública da cidade, talvez por economia, era desligada por volta da meia noite Era a senha para começarem as serenatas. O ponto de encontro dos seresteiros era a Praça da Matriz, ao pé da estátua de Clóvis Beviláqua, assim que a luz apagasse. Nessas condições, algumas vezes marcava com Zé Músico e seguíamos pela madrugada, ele ao violão entoando cantigas. Tive a honra de prezar da amizade desse artista, de visitar sua casa e de conhecer o seu repertório. Tive o prazer de acompanha-lo em algumas das serenatas nas quais ele cantava e tocava violão com o apoio do cavaquinho de João Jonas e do pistom de Toinho Nicolau... Porém a marca de Zé Músico foi Saudade, que ele entoava para abrir e fechar suas cantatas., emocionando os corações viçosenses nas reuniões festivas e serenatas, pondo lágrimas nos olhos de quem ouvia e associava música e letra com boas recordações. Saudade tornou-se uma espécie de Hino Sentimental de Viçosa. Só mais tarde, em 2004, através do pesquisador Cristiano Câmara, conheci um pouco mais sobre essa música que tanto encantava e encanta os viçosenses. Liguei para ele, cantarolei e ele, surpreso, me pediu tempo para pesquisar, pois ainda não conhecia a cantiga. Menos de uma hora depois, ele retornou a ligação. Daí, tomei conhecimento que  Saudade era de autoria de Jayme Redondo. Esse autor nasceu em São Paulo em 190 e faleceu em 1952.  

O que foi transcrito é apenas uma amostra do livro de José Mapurunga. O leitor terá muito mais o que apreciar se adquirir o Roteiro Sentimental de Viçosa do Ceará.