segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Sonho e realidade de Galba Gomes

Capa é projeto de Luís-Sergio Santos e desenho de Fausto Nilo

          Sótão, montanha, rio, campo/cidade – ou Coreaú/Fortaleza – os anos 60 – o movimento estudantil e as lutas contra a ditadura militar – são temas chaves do livro O Sonho é Realidade, de Galba Gomes.  O lançamento ocorreu em 19 de julho último, na Associação Brasileira de Odontologia-CE, na capital cearense.
     Festa abrilhantada pela calorosa, leve – sem jamais perder a profundidade – e bem-humorada apresentação de João de Paula Monteiro Ferreira, um mestre despretensioso – e arrebatador – da arte de falar em público.
      O projeto gráfico é do jornalista e professor Luís-Sergio Santos. A capa, com logotipo criado por Fausto Nilo para o antigo Diretório Central dos Estudantes (DCE) da metade e final dos anos 60, remete a antigos sonhos e lutas. Merece especial registro o erudito texto da orelha do livro, a cargo do professor – de Ética e Filosofia do Direito – Oscar d´Alva Filho.

          Sótão     
     Mas o que sótão, rio, montanha, campo e cidade e anos 60 (movimento estudantil e outras efervescências sociais e culturais) têm a ver com O Sonho é Realidade?
     Na cidade de Coreaú, terra natal do autor, havia (talvez ainda exista) uma casa com sótão que despertava no menino Galba o desejo de superação de conhecer o proibido, inacessível na sua intimidade, o, desejo de desvendar tudo considerado inexpugnável (o grifo em itálico – letras inclinadas – indica o texto do escritor).
     Poderia ser a vocação para a Ciência, a bendita curiosidade que levou nossos ancestrais às grandes descobertas? Insatisfação com a ordem pré-estabelecida? Busca de sublimação? (O sótão é, depois do teto, a parte mais alta de uma casa). Sótão leva-nos também a Carl Gustav Jung no livro Memórias, Sonhos, Reflexões. Ele também era atraído por um sótão, na infância.                                                       
     Leiam o livro e tirem suas conclusões.

               Rio
        Outro objeto do fascínio de Galba Gomes era o rio Coreaú:
     Mergulhar nas águas do gerava sensação de liberdade e alegria, de bem-estar com a percepção de ser este um lugar transformador, capaz de propiciar autonomia, decorrente da vontade inata de buscar afirmação na condição de ser um destemido e pronto para enfrentar o mundo.             Segundo o Dicionário de Símbolos, “o rio simboliza o fluir das águas e a fluidez das formas, a fertilidade, a morte, a renovação, a mudança constante. O filósofo grego dizia que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio. A correnteza do rio simboliza a corrente da vida e da morte”.

        Montanha
     E montanha? O autor de O Sonho é Realidade gostava de contemplar, quando menino, em Coreaú, a silhueta da Serra Grande (Ibiapaba) e já fazia inquietantes indagações: 
    O mundo vai além daquela serra? Como é o além daquela serra? Há outras terras e outra gente por detrás daquela serra? Essa reflexão, sem resposta, significava de maneira empírica e fantasiosa a busca do sentido do espacial, do temporal, da existência de outras vidas na visão interrogativa do sujeito ainda criança, visão estimuladora e compositora do sentido inato dos indivíduos na busca da integração, no mundo e para o mundo.
     Essas palavras precisam de explicação?
     Fiquemos, por enquanto, em sótão, rio e montanha. Campo está incluído nos dois primeiros ou em outros tópicos seguintes deste comentário. Cidade (Fortaleza), anos 60 e movimento estudantil serão comentados mais adiante.
              
           Convergências    
              Conheço o odontólogo, psicólogo e professor Galba Gomes desde o final dos anos 70 ou início dos 80. Fui apresentado a ele por um amigo. comum: o jornalista Gervásio de Paula, o qual, na época, editava jornal da Associação Brasileira de Odontologia (ABO)- secção do Ceará.
         Poderíamos ter-nos conhecido muito antes, porque temos vários outros pontos em comum. O primeiro deles: sou parente por afinidade – ou contraparente – do Galba Gomes.
             Outras convergências: também morei no bairro Jacarecanga, estudei no Colégio Cearense, participei do movimento estudantil nos anos 60. Fomos presos políticos (eu por quatro meses, ele por três dias, em datas, ocasiões e motivos diferentes).
          Para completar: gostamos do Centro de Fortaleza e fomos filiados, nos anos de 80 e 90, ao Partido Democrático Trabalhista - PDT.
           Temos divergências, aprofundadas e radicalizadas a partir de 2014. O relacionamento pessoal, no entanto, não foi afetado. Faço opção, neste espaço, em discorrer apenas sobre as convergências e a respeito do livro O Sonho é Realidade.

O autor com a revisora do livro Rejane Barros
               
Contraparente         
     Segundo o dicionário Caldas Aulete, contraparente é o “parente por afinidade; pessoa com a qual o vínculo de parentesco se estabelece em decorrência de casamento com algum parente direto”.
     Descobri recentemente: um primo do Galba, Edson Gomes, também odontólogo, já falecido, era casado com uma prima minha, a professora de Música (piano) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Rita Maria Pereira Gomes. Então somos primos por afinidade.

               Colégio Cearense         
     Outro elo significativo: o Colégio Cearense do Sagrado Coração (Marista), onde Galba Gomes foi aluno interno do final da década de 50 a 1960. Estudei ali, de 1963 a 1968, isto é, da primeira série do antigo Curso Ginasial ao segundo ano do então Curso Científico.
     Deixemos Galba Gomes falar sobre o Cearense em O Sonho é Realidade:
          O Colégio Cearense gerava um impacto forte para os novatos que ali chegavam. O lugar era bem elitizado, a arquitetura muito bonita, uma quadra de esportes que causava a admiração da garotada, arquibancada de cimento com quatro lances, era um mundo novo para todos. Até a água usada era mineral magnesiana, da fonte lá existente.         
          A arquitetura permanece a mesma, mas o Colégio Cearense fechou em 2007, para tristeza de muitos dos seus ex-alunos.  O antigo prédio foi preservado (tombado) pelo patrimônio histórico do município de Fortaleza e do Estado do Ceará. Para garantir ainda mais a integridade do conjunto arquitetônico seria bom que a União (governo federal) adotasse idêntica medida. A fonte de água mineral teve de ser fechada, muito antes do colégio, devido às infiltrações poluentes do lençol freático de Fortaleza. Uma lástima.

         Centro de Fortaleza
     Eu e Galba – outra afinidade – somos admiradores e entusiastas da malha central da capital cearense, hoje desprezada pelos poderes públicos, empresariado e por alguns setores da população.
     O Centro, para a minha geração e a do Galba, era o ponto de convergência da provinciana capital dos anos 50 e 60.  Eu, nascido e criado em Fortaleza, com algumas passagens pelo Interior do Ceará (Guaramiranga e Palmácia, ambas no Maciço de Baturité). Ele, natural de Coreaú, sua inesquecível Palma (antigo nome da cidade da Zona Norte cearense), veio para Fortaleza ainda criança e descobriu os encantos da capital ainda provinciana. Tornou-se fortalezense de coração.
       Mesmo com a degradação e as opções dos shoppings centers, a área central continua a povoar o meu imaginário. Anima-me a esperança, talvez sonho irrealizável, de ver o Centro, principalmente o seu ícone maior, a Praça do Ferreira, voltar aos seus tempos áureos.  
          Ninguém melhor do que Galba Gomes para expressar esse sentimento no livro O Sonho é Realidade:
           A Praça do Ferreira. Nada acontece nesta cidade que não surja ou repercuta ali. É um lugar que energiza, charmoso, bonito e privilegiado pelo próprio clima sempre ameno”.

            Jacarecanga
     Galba Gomes descreve, com rara maestria e muita sensibilidade, o bairro do Jacarecanga dos anos 60:
     Em 1962 mudamos de endereço e fomos morar na Av. Francisco Sá, no bairro Jacarecanga que possuía uma arquitetura encantadora, habitado por algumas famílias ricas da época. Tinha casas bonitas, bem estruturadas, um local organizado e gostoso de morar. Hoje o bairro se descaracterizou coma demolição de vários de seus belos sobrados.
    O escritor relembra figuras e fatos do Jacarecanga com os quais convivi ou presenciei. Eu morava na rua paralela à Avenida Francisco Sá, Rua Monsenhor Dantas, continuação da Rua São Paulo, na antiga Vila José Pinto do Carmo. O início da Avenida Francisco Sá, onde morou Galba Gomes, era habitado por famílias da burguesia ou alta classe média.
     Um dos tipos marcantes era o Clorimel, esquerdista, possivelmente ligado ao PCB, e proprietário de um bar. Eu não tinha muito contato com o Clorimel. Quem era ligado a ele era outro grande amigo meu, o hoje farmacêutico Francisco Edson Pereira, morador do bairro naqueles tempos.
     Eu frequentava a casa de um irmão do Clorimel, o Cocibel. Percebe-se que os pais de ambos não foram – digamos – muito felizes na escolha dos nomes dos filhos: Clorimel e Cocibel... Imaginem!
     Galba revive episódio do qual eu lembro muito bem. A pregação de um pastor evangélico, metido a milagreiro, na Praça Gustavo Barroso (Praça do Liceu). Atraía multidões, fenômeno comentado em toda a cidade. O show do religioso durou cerca de uma ou duas semanas, sempre no início da noite. Deixemos o autor narrar o fato, no qual esteve envolvido o esquerdista Clorimel:
     No início dos anos 60 apareceu um milagreiro charlatão que reunia milhares de pessoas na Praça do Liceu. Uma noite a molecada pediu emprestada a cadeira de rodas de um portador de deficiência, vizinho, e levaram o Clorimel na cadeira, bêbado, para obter o milagre, com o intuito de desmistificar e debochar o charlatão. Quando o pregador charlatão anunciou que os cegos iriam enxergar, os aleijados andarem, o Clorimel aos gritos começou a pular e subiu ao palanque onde o milagreiro anunciou o falso milagre.
     Depois do relato do Galba sobre o fato, deixo minha impressão: ainda hoje eu recordo o nome do “milagreiro”. Era um pastor evangélico e norte-americano, jovem, talvez não tivesse 30 anos. Falava em inglês para o público e necessitava sempre da ajuda de um intérprete para tudo que dizia. Tenho excelente memória e, apesar de o nome não ser citado no livro, este logo me veio à mente: Morris Cerullo. Pesquisei no Google e Youtube. Para surpresa minha descobri que o malandro ainda hoje está vivo e continua a fazer as mesmas presepadas “milagreiras”. Tem 81 anos. É o precursor e inspirador de canalhas – todos golpistas – do tipo Silas Malafaia, Marcos Feliciano, pastor Everaldo – e outros enganadores da boa fé do povo simples. Doidos...  Por dinheiro.

              Movimento secundarista/golpe militar
     Galba Gomes participou do movimento estudantil desde o início da década, no Liceu do Ceará. Ligou-se, depois, aos trotskistas da clandestina IV Internacional, sem ser militante, quando era universitário; eu, secundarista, em 1968 e 1969, militante do, também clandestino, na época, Partido Comunista do Brasil - PCdoB.
     Não foi no conservador, rígido e elitista Colégio Cearense (Marista) que Galba Gomes deu seus primeiros passos no movimento estudantil, mas no também tradicional, porém muito mais aberto, Liceu do Ceará:
    Ingressar no Liceu do Ceará em 1960 foi algo de muita significância. Estudar lá possibilitou a visão crítica com a forma de ver e sentir o mundo, de forma diferente, crítica. Teve grande valor para formar a personalidade de futuro militante, na política estudantil, na luta pela melhoria e direito a uma vida de qualidade e respeito humano.
     O inconformismo com as injustiças sociais, inclusive o racismo, vem, no entanto, de Coreaú, e é contado nessas memórias. Galba, criança de classe média, já se incomodava com o fato de ver seus companheiros de brincadeiras, meninos pobres, sem acesso à  educação, saúde e até a ima alimentação mais consistente. Festas para brancos e pretos (ou pardos) no Coreaú dos anos 50 também lhe causavam justa indignação. 
     O autor escreve, com leveza e sensibilidade de memorialista, sobre a agitação e a polarização esquerda/direita do início e metade dos anos 60, que culminaram com a deposição do presidente João Goulart e a instauração da ditadura militar em 1964.    
     Pela ótica de Galba chegam-nos pessoas e episódios marcantes daqueles anos dourados: o CLEC (Centro Liceal de Educação e Cultura), versão liceísta e secundarista do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), que aglutinava os estudantes universitários em termos nacionais.  O CLEC empreendeu campanhas e forjou grandes lideranças. As refregas dos estudantes do Liceu com soldados do Corpo de Bombeiros (seus vizinhos) e com a empresa de transporte coletivo do Sr. Oscar Pedreira, da linha Jacarecanga-Centro (e vice-versa), com os famosos e inesquecíveis ônibus de cor verde-escura.
     Entre esses líderes destaca-se a figura lendária do Parangaba, cujo nome era Carlos Augusto de Lima Paz, um dos maiores líderes secundaristas do início dos anos 60.
     No movimento secundarista e universitário, antes de 1964 e até um pouco depois, já se delineavam disputas de influência entre militantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e as organizações Juventude Estudantil Católica – JEC -, secundarista, e Juventude Universitária Católica – JUC que deram origem, um pouco mais adiante, à Ação Popular, de tendência católico-esquerdista. Galba Gomes nos fala de uma terceira força, a Juventude Independente do Liceu (JIL), da qual alguns (não todos) se ligariam depois aos trotskistas, inclusive o próprio Galba Gomes.
     A partir de 1966, 1967 e 1968, outra força de esquerda se tornaria preponderante no Liceu e em quase todo o movimento estudantil: o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

          1968: antecedentes e consequências
     Se o início da década de 60 (período que antecedeu a deposição do presidente João Goulart) foi muito agitado, o ano de 1968 teve muito mais agitação e efervescência cultural. Marcou o auge da resistência estudantil ao golpe militar de 1964. Por outro lado, aquele ano é divisor também da repressão da ditadura contra os movimentos populares, inclusive o estudantil.
     O ano de 1965 registra o ingresso de Galba Gomes na Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). O contato mais aprofundado com as tendências de esquerda a disputarem a preferência da massa estudantil universitária: Partido Comunista Brasileiro (PCB), Ação Popular (AP), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), IV Internacional ou Partido Operário Revolucionário Trotskista - PORT, a preferida do jovem estudante de Odontologia.
     Aí vai minha primeira – e única – crítica ao livro: tenho a impressão  que o autor procura minimizar a importância do PCdoB no movimento estudantil (universitário e secundarista) naquele período. O PCdoB era, em Fortaleza, a principal força desse segmento em 1968 (com demonstrações de vitalidade já em 1966 e 1967). Como diria Caetano Veloso em Tropicália, no Ceará, o PCdoB organizava o movimento! Esse fato fica, no entanto, encoberto nas páginas de O Sonho é Realidade.  
     Em termos nacionais tal situação era inusitada, nos anos finais da década de 60. O PCB – Partido Comunista Brasileiro – havia se retirado do movimento estudantil. No Rio de Janeiro (na época sede da cidade-estado da Guanabara, cuja capital era a própria cidade do Rio de Janeiro, vizinha do velho Estado do Rio de Janeiro, que tinha como capital Niterói. Imaginem a confusão para os jovens de hoje entenderem isso) e São Paulo, as grandes caixas de ressonância nacionais, o movimento estudantil era liderado pelas chamadas Dissidências do PCB (Vladimir Palmeira, do Rio, e José Dirceu, de São Paulo, rompidos com esse partido) e pela Ação Popular – AP - (Luís Travassos). Os trotskistas, embora tivessem grandes, aguerridos, respeitados e preparados líderes em quase todas as capitais brasileiras, não dispunham de nenhuma liderança com a visibilidade nacional dos nomes citados.
    Por que o PCdoB tinha (e ainda tem) tanta força em Fortaleza?
     Dois motivos essenciais:
     1º - Em Fortaleza, os jovens que discordavam da posição conciliadora do Partido Comunista Brasileiro (PCB) não criaram grupo do tipo Dissidência da Guanabara (DI-GB) e Dissidência de São Paulo (DI-SP). Não houve uma DI-CE: Os dissidentes do PCB fortalezenses abrigaram-se, em sua grande maioria, no PCdoB, que se proclamava legítimo herdeiro e continuador do pai de todos os PCs: o antigo Partido Comunista do Brasil (PCB. O "do" não entrava na sigla. Foi entrar depois da criação do PCdoB);
     2º - No movimento estudantil, os militantes do PCdoB, embora adotassem postura radical contra a ditadura militar, mantinham também uma política “pé-no-chão” no que se refere às reivindicações específicas dos estudantes: melhoria do ensino curricular e das instalações das faculdades e colégios (salas de aulas condignas, bebedouros, etc).  Enquanto isso, militantes trotskistas e até da AP deliravam em grandes elucubrações anticapitalistas, a pregar a “revolução socialista” ou “proletária”. A massa estudantil – formada por meros simpatizantes da esquerda e muitos setores apolíticos – preferia o discurso pé-no-chão do PCdoB.  
    
          Omissões
     Galba Gomes é muito melhor quando disserta, narra ou descreve o movimento estudantil do começo dos anos 60, isto é, antes da ditadura militar. Na parte referente à agitação pós-ditadura, principalmente o auge, 1968, vemos um Galba cauteloso e pouco detalhista, principalmente no que diz respeito à disputa entre as tendências de esquerda.
     Ao falar da reorganização do movimento estudantil, no período da ditadura militar, porém antes do Ato Institucional Nº 5 (AI-5),  Galba Gomes relata a eleição do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Ceará (UFC) em 1966, numa frente de esquerda, quando foi eleito presidente o estudante de Economia Homero Castelo Branco. Houve ainda eleição dos respectivos diretórios acadêmicos. Até aí tudo bem.
     Refere-se também à eleição de João de Paula Monteiro Ferreira, aluno da Faculdade de Medicina, à presidência do DCE, em 1967, com apoio das diferentes tendências do movimento universitário. A eleição de João de Paula para a presidência do DCE é narrada na página 152 de O Sonho é Realidade, mas o fato de João de Paula, na época, ser militante do PCdoB, só vem a ser dito apenas na página 162 do livro. Dez páginas depois.
    Mais adiante, no capítulo  5, com título 1968: Tendências Ideológicas e subtítulo cisão, o autor, de repente, se torna incisivo e detalhista:
     Em março de 1968 irrompe uma dissidência no DCE e três das tendências ideológicas decidem lançar chapa ao DCE. O PCdoB lança José Genoino, os Trotskistas lançam Arlindo Soares. A AP (Ação Popular) Mariano Freitas, narra Galba.
     É a minha ressalva ao livro: o PCdoB – emergente (e já majoritária tendência de esquerda) no Ceará – elege os presidentes do Diretório Central dos Estudantes da UFC em dois anos consecutivos (1967 e 1968) e essa dupla vitória passa quase despercebida nas páginas de O Sonho é Realidade.
Ressalte-se ainda que o PCdoB  já controlava, em 1968, o Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará (CESC). Era, sem dúvida, a força hegemônica de todo o movimento estudantil em 1968, ano de sonhos e de lutas.  
    Maior importância é dada no livro à eleição de Inocêncio Uchoa, trotskista filiado à IV Internacional, à presidência do Centro Acadêmico Clóvis Bevilacqua da Faculdade de Direito da UFC. Diretório Acadêmico da mais alta relevância, não resta a menor sombra de dúvida, mas abaixo da magnitude do Diretório Central dos Estudantes (DCE), entidade representativa de todos os universitários cearenses na época.  

         Lutas, formatura e o discurso não proferido
     O escritor transporta-nos para outros fatos relevantes ocorridos nos anos de 1967 e 1968 em Fortaleza: passeata dos 20 mil, quebra-quebra do USIS (United States Information Service), escritório ligado à embaixada dos EUA no Brasil; repressão policial, os Congressos da UNE de 1967 (Valinhos-SP, do qual Galba foi participante) e o de Ibiúna, também em São Paulo, onde cerca de mil participantes foram presos pela repressão.
   Chegam-nos também, pelas páginas de O Sonho é Realidade, o auge da repressão e do obscurantismo que se abateu pelo País com a decretação do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), o golpe dentro do golpe.
     A truculência do AI-5 bateu forte em cima de Galba Gomes e de todos os concludentes da UFC: ele seria o orador oficial da solenidade de colação de grau que se realizaria na Concha Acústica da UFC. Por se recusar a modificar trechos do discurso que seria proferido na sessão solene, peça oratória de teor moderado, mas incisivo e fiel aos seus princípios do orador, a festa foi cancelada.
     O discurso só viria a ser proferido, pelo mesmo orador, 30 anos depois, no dia 12 de dezembro de 1998, em memorável solenidade na mesma Concha Acústica, sob a brisa sagrada e benfazeja da liberdade, nas palavras de Galba Gomes.

Episódios tragicômicos
   O autor nos oferece de brinde, talvez para aliviar leitura de época tão agitada, episódios  por ele chamados de trágicos e jocosos: machismo na esquerda (no qual revela mais o puritanismo dos militantes do que o machismo), detenção na DOPS (sua primeira prisão), Antonio Morais (o famoso vereador 203 da campanha de 1974), o episódio da comuna cearense da Reitoria (ocupação daquele espaço pelos estudantes em 1968), conhecendo Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Célia Guevara.
     Sobre a visita do casal Sartre-Simone de Beauvoir a Fortaleza, o escritor comete um engano: diz que o fato ocorreu em 1962. Este jornalista, que já foi ombudsman do jornal O Povo, não resiste e corrige: a visita dos dois franceses famosos ocorreu dois anos antes – 1960 – e mereceu destaque da imprensa nacional. Sartre e La Beauvoir visitaram cerca de dez cidades brasileiras, inclusive Fortaleza.    
         Intervenções brilhantes
    O Sonho é Realidade vem intercalado com artigos de pessoas companheiras da trajetória de Galba Gomes, além da apresentação de João de Paula Monteiro, prefácio de Leonardo Pildas e posfacio de Urânia Almeida Gomes (esposa do autor). Temos ainda colaborações de Wilson Gomes Belchior Fernandes, Raimundo Leopoldo Meneses Neto, Eduardo Gomes Machado, Antonio Soares Brandão, Pedro Albuquerque, Mércia Pinto, José Arlindo Soares, Inocêncio Uchoa e Sérgio C. Buarque. É o que se pode chamar de intervenções literárias.
     Todos brilhantes, mas o texto que me chamou mais atenção, pelo tom emocional e muito inteligente, foi o de Mércia Pinto: Em Dezembro de 1968: fica comigo esta noite.
     A noite do AI-5. Mércia descreve com perfeição o ambiente da tragédia dentro da tragédia, o golpe dentro do golpe. Nada mais evocativo do que lembrar o samba-canção Fica Comigo Esta Noite, sucesso de Nelson Gonçalves, lançado em 1961 e que perdurou por umas duas décadas, principalmente nos ambientes boêmios.
          Percalços
     O recém-graduado opta por fazer o mestrado em Odontologia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1969. Um risco até para quem, a exemplo de Galba,  recusara o caminho da clandestinidade e da luta armada contra o regime ditatorial, mas que possuía antecedentes políticos. A capital paulista vive muita tensão: o auge da guerrilha urbana e também da repressão feroz, dos assassinatos e das torturas a presos políticos.
     Alcança o objetivo e retorna a Fortaleza. Conhecido na capital cearense, sua cidade adotiva, é aqui que ele enfrenta o estigma de opositor da ordem instaurada em 1964 e reforçada em 1968.  
     Começa a trabalhar num consultório de odontologia. Chega a ser preso e interrogado pelo simples fato de seu cartão de visitas ter sido encontrado em poder de um preso político. Vive três dias de muita angústia, mas é libertado. Os percalços não param: é impedido de exercer a profissão no Sindicato dos Bancários.
     É excluído do concurso para professor do Curso de Odontologia da UFC, mesmo tendo obtido vantagem na prova de títulos, escrita e didática. Submetido a assédio moral (você não deve fazer a prova, não tem chance) é reprovado na aula-experimento para o qual fora sorteado.

     Antes, em 1968, ainda estudante de Odontologia, fora demitido do Colégio Justiniano de Serpa, onde lecionava Biologia. Óbvios motivos políticos.

          Vitórias    
     Galba não desiste. Consagra-se na profissão que abraçara nas lutas da década de 60. Além de odontólogo competente e autor de trabalhos científicos, destaca-se como líder da categoria: na presidência da Associação Brasileira de Odontologia-CE e do Conselho Regionl de Odontologia  (CRO). Retoma outro antigo sonho: o de professor. Exerceu o cargo no Curso de Odontologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), do qual foi coordenador. É mestre em Psicologia pela Unifor. Atuou ainda no serviço público, como secretário-adjunto de Saúde
     No posfácio de Urânia de Almeida Gomes, esposa de Galba, uma definição do autor:
     A integridade moral, a honestidade em relação a tudo e a todos, a fidelidade a seus conceitos, continuam os mesmos. Em relação aos amigos, são intocáveis e a eles tem toda a dedicação. Sua personalidade o tempo apenas lapidou.

    Este blogueiro assina embaixo e faz apelo: que venham mais livros.