O escritor José
Mapurunga lança neste sábado (29/4) o livro Roteiro
Sentimental de Viçosa do Ceará, na própria Viçosa do Ceará, terra natal do
autor. O evento ocorrerá no histórico Teatro Pedro II (tema de capítulo do
livro), às 19h30, numa promoção da Secretaria Municipal de Cultura e Meio Ambiente
viçosense, tendo à frente o secretário Aníbal José Sousa. O prefeito José Firmino
de Arruda deverá estar presente ao acontecimento que reunirá outras autoridades,
intelectuais, pesquisadores, lideranças
do município e convidados.
O livro já havia sido lançado em Fortaleza
no último dia 14 de fevereiro, no auditório Murilo Aguiar da Assembleia
Legislativa do Estado, em acontecimento prestigiado por escritores, integrantes
da colônia de Viçosa do Ceará radicada na capital cearense, amigos e
admiradores do trabalho de José Mapurunga, autor de mais de 20 peças teatrais,
entre as quais Farsa da Panelada, Auto da Camisinha e Auto do Rei Leal.
Roteiros e guias sentimentais de cidades e
outros lugares sempre são leitura atraente, mas, quando burilados pelas mãos de
escritores e poetas, tornam-se ainda mais valiosos. É o caso do Roteiro Sentimental de Viçosa do Ceará, escrito
pelo poeta, escritor e dramaturgo José Mapurunga, meu amigo e antigo companheiro
das lutas estudantis do ano mágico de 1968.
O autor mergulha na história, geografia,
flora, fauna, culinária, arquitetura religiosa, narrativas reais e lendas
populares de Viçosa do Ceará, sua terra natal, sempre lembrada por ele em seus escritos
anteriores e em conversas com amigos. Agora, essas lembranças e pesquisas
transformam-se em livro, mais um ponto marcante na trajetória de José
Mapurunga.
Writing a poem is discovering (“Escrever um poema é descobrir”,
dizia o poeta norte-americano Robert Frost). Nessa viagem sentimental através
de séculos e décadas, Mapurunga faz interessantes descobertas. Vêm
à tona histórias - algumas alegres e
curiosas, outras tenebrosas – ouvidas pelo menino Mapurunga dos
seus pais, avós, tios avós e outras figuras marcantes da cidade. O texto
tem a forma de prosa, mas com toque poético, criativo e mesclado, aqui e acolá, com
o humor discreto do autor. A ordem alfabética dos assuntos (ou verbetes)
possibilita ao leitor iniciar o livro pelo tema que julgar mais interessante.
Com 262
páginas, Roteiro Sentimental de Viçosa do
Ceará foi editado e impresso pela Expressão Gráfica e Editora. A foto da
capa, de Daniel Carneiro, lembra paisagem europeia, mas retrata fenômeno típico
de Viçosa: um denso nevoeiro e árvores seculares, com um homem abrigado por um
guarda-chuva. O design da capa é de Natália Mapurunga e Gilberlânio Rios. A
coordenação editorial é de Daniel Monteiro.
Transcrevo
trechos de alguns capítulos do livro para dar uma ideia da dimensão do trabalho
de José Mapurunga:
Assombrações
No passado, quando o motor da luz
dava dois sinais antes deixar as ruas de Viçosa na mais completa escuridão,
nove horas da noite, as almas penadas tinham licença para assombrar os vivos.
Frequentes eram as noites em que elas apareciam. Visagens e vivos eram
vizinhos. Mesmo dentro de casa, alta madrugada, sempre havia alguém tremendo de
medo, ouvindo nitidamente pisadas estranhas sobre as pedras toscas que
pavimentavam as Ruas. Ou ouviam pisadas semelhantes de alguém que já havia
morrido. Coisas assim que arrepiavam os mais descrentes... A chegada da energia
de Paulo Afonso, no final da década de 60, expulsou a maior parte desses entes
do além, que então se refugiaram nos sítios, nas proximidades de pequenos
cemitérios avoengos, no meio do mato, pertinho das capelas familiares onde
repousam os ossos de ancestrais teimosos em não largar o que amaram em vida.
Cachaça
... Meu tio
Chico Caldas, entusiasta da cachaça viçosense, comprava regularmente os
melhores exemplares produzidos e envelhecidos em toda região. Aos amigos que
adentravam na sua casa servia doses em copinho de vidro. Aos visitantes,
presenteava com litros do produto, o que muito ajudou a construir a fama da
cachaça artesanal produzida em Viçosa.
Enéas
Cavalcante, no seu livro de memórias denominado Evocações fala de engenhos de
cachaça da passagem do século 19 para o 20: o do seu avô Mariano Lopes, no
sítio Bananeiras, e na fábrica de Cândido do Espírito Magalhães, no Careta.
Enéas também insinua que até o vigário José Ferreira da Ponte, que esteve à
frente da paróquia entre 1905 e 1910, mantinha fabriqueta de cachaça no Sítio
da Santa, o Catinguba, hoje um bairro da cidade.
Cauim
É uma bebida
alcoólica de origem ameríndia, feita em todo o Brasil, usando-se como matéria
prima mandioca... Macaxeiras eram
descascadas e cozinhadas em caldeirões de barro. Cozidas e quase esfriadas,
eram mastigadas por moças índias, que sentadas no chão, iam pondo a massa, já
bem pastosa, em outras vasilhas. Depois, colocavam a massa em caldeirões com
água, para nova fervura. Em seguida, punham o líquido resultante em potes, que
eram bem fechados e enterrados até o meio, dentro das cabanas. Daí a dois dias
a fermentação estava completa e o cauim pronto para ser bebido até a última
gota. Primeiro era necessário que lhe fosse retirado, com uma peneira fina, o
cabeço, uma nata que se formava no processo de fermentação da bebida. Pará que
a bebida não estragasse tanto a mastigação da macaxeira quanto a retirada do
cabeço deveriam ser feitos, exclusivamente, por moças virgens.
Culinária
As avós viçosenses repetem ainda hoje
as antiquíssimas receitas que aprenderam com suas avós. Iguarias venerandas,
apreciadas por pessoas de todas as idades e ensinadas às novas gerações.
Viçosense morando em outros lugares, vez por outra, mata a saudade se deliciando
com velhas pratos viçosenses, como a mui estimada Carne Seca com banana verde.
Viçosense longe de sua terra adora receber petas de goma, bolinhos crocantes e
doces que aprendeu a gostar quando criança. O afetivo paladar quer se sentir no
aconchego de Viçosa.
No livro,
José Mapurunga dá a receita das seguintes iguarias: bolinhos de goma, bolo de
milho na pedra, carne seca com banana verde, esquecidos, doce de buriti, doce
de jaca em calda, doce de jaca em massa, doce de laranja da terra.
Diabo Grande
Jurupariaçu na língua tupi. Principal
da aldeia indígena da Ibiapaba onde padre Francisco Pinto e padre Luiz Figueira
ficaram durante quatro meses, de setembro do ano de 1607 e até 11 de janeiro de
160. Enquanto estiveram em Ibiapaba, catequizaram os índios e fizeram
negociações com tribos hostis, visando a abertura de um caminho por terra para
o Maranhão. Antes, em 1604, aliado dos franceses, Diabo Grande participou da
resistência ao avanço de Pedro Coelho. No livro intitulado Viçosa do Ceará –
Notícias Esparsas, o autor, Joao Otávio Siqueira, diz: o padre francês Yves d´verteu,
em sua viagem ao Norte do Brasil, pretende que o chefe indígena Jurupariaçu, o
Diabo Grande, era filho de um conterrâneo seu com uma nativa tabajara.”
Igreja do Céu
Mesmo antes de ali haver um igreja, o
local era conhecido como Morro do Céu. No romance Iracema, de José de Alencar,
escritor propenso a criar lendas, tem nota de rodapé afirmando que no Morro do Céu
nasceu o índio Felipe Camarão, herói das guerras contra a Invasão Holandesa...A
estátua do Cristo na torre da Igreja foi esculpida pelo italiano Agostinho
Balmes Odísio, que fora aluno de Rodin, famoso escultor francês...Quando criança
e adolescente subi inúmeras vezes a escadaria para cegar à igrejinha e em cima
deslumbra-se com uma paisagem de tirar o fôlego.
Igreja Matriz
A Igreja Matriz é hoje tombada pelo
IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A inauguração
se deu a 15 de agosto de 1700, pelo então superior dos jesuítas na Aldeia da
Ibiapaba, padre Ascenso Gago.
Mapurunga discorre sobre as imagens de Santa Ana, de Nossa
Senhora da Cabeça e se detém na descrição dos impressionantes painéis da Igreja
da Matriz:
Um dos elementos importantes da
Igreja Matriz de Viçosa é o forro do altar-mor, onde estão pintados 12
estranhos painéis. Quando criança, eu me distraía da missa para contemplar
essas pinturas místicas, a imaginar histórias a partir do que eu via. Toda vez
que vou a Viçosa os contemplo. Para Antônio Bezerra, eram inspirados em motivos
bíblicos. Para o arquiteto Liberal de Castro, simbolizam virtudes cardeais,
virtudes teologais e sentidos humanos. Sobre a autoria das pinturas, não
existem pistas, apenas perguntas: seria algum padre ou irmão leigo da Copanhia
de Jesus? Seria serviço contratado a terceiros pelos padres da Aldeia da
Ibiapaba?
Matança da Tabatinga
Crime acontecido no sítio Tabatinga,
distante sete quilômetros da cidade de Viçosa, em propriedade pertencente ao
major Inácio José Correia, o Macaxeira. Eram 7 horas da noite do dia 6 de
outubro de 17 quando a casa grande do major José Inácio (onde hoje é o engenho
de cana do major Raimundo Nestor Mapurunga) foi assaltada por membros de uma
família que residia nas proximidades. O ataque foi comandado por Francisco
Gonçalves da Costa, o “Velho Juriti”.
José Mapurunga
relata que foram trucidadas 19 pessoas na chacina e cita os nomes das vítimas,
entre as quais mulheres e crianças, pessoas da família do major Inácio,
serviçais e vizinhos que tentaram defende-los. O major Inácio, paralítico, foi
retirado do local antes da tragédia, mas seus familiares não escaparam à sanha
dos inimigos.
Zé Músico
No final da década 1960, a energia de
Paulo Afonso chegou a Viçosa, mas a iluminação pública da cidade, talvez por
economia, era desligada por volta da meia noite Era a senha para começarem as
serenatas. O ponto de encontro dos seresteiros era a Praça da Matriz, ao pé da
estátua de Clóvis Beviláqua, assim que a luz apagasse. Nessas condições,
algumas vezes marcava com Zé Músico e seguíamos pela madrugada, ele ao violão
entoando cantigas. Tive a honra de prezar da amizade desse artista, de visitar
sua casa e de conhecer o seu repertório. Tive o prazer de acompanha-lo em
algumas das serenatas nas quais ele cantava e tocava violão com o apoio do
cavaquinho de João Jonas e do pistom de Toinho Nicolau... Porém a marca de Zé
Músico foi Saudade, que ele entoava para abrir e fechar suas cantatas.,
emocionando os corações viçosenses nas reuniões festivas e serenatas, pondo
lágrimas nos olhos de quem ouvia e associava música e letra com boas recordações.
Saudade tornou-se uma espécie de Hino Sentimental de Viçosa. Só mais tarde, em
2004, através do pesquisador Cristiano Câmara, conheci um pouco mais sobre essa
música que tanto encantava e encanta os viçosenses. Liguei para ele, cantarolei
e ele, surpreso, me pediu tempo para pesquisar, pois ainda não conhecia a
cantiga. Menos de uma hora depois, ele retornou a ligação. Daí, tomei
conhecimento que Saudade era de autoria
de Jayme Redondo. Esse autor nasceu em São Paulo em 190 e faleceu em 1952.
O que foi
transcrito é apenas uma amostra do livro de José Mapurunga. O leitor terá muito
mais o que apreciar se adquirir o Roteiro
Sentimental de Viçosa do Ceará.