Capa é projeto de Luís-Sergio Santos e desenho de Fausto Nilo
Sótão, montanha, rio, campo/cidade
– ou Coreaú/Fortaleza – os anos 60 – o movimento estudantil e as lutas contra a
ditadura militar – são temas chaves do livro O Sonho é Realidade, de Galba Gomes. O lançamento ocorreu em 19 de julho último,
na Associação Brasileira de Odontologia-CE, na capital cearense.
Festa
abrilhantada pela calorosa, leve – sem jamais perder a profundidade – e bem-humorada
apresentação de João de Paula Monteiro Ferreira, um mestre despretensioso – e
arrebatador – da arte de falar em público.
O projeto gráfico é do jornalista e professor
Luís-Sergio Santos. A capa, com logotipo
criado por Fausto Nilo para o antigo Diretório Central dos Estudantes (DCE) da
metade e final dos anos 60, remete a antigos sonhos e lutas. Merece especial
registro o erudito texto da orelha do livro, a cargo do professor – de Ética e
Filosofia do Direito – Oscar d´Alva Filho.
Sótão
Mas o que sótão, rio, montanha, campo e cidade
e anos 60 (movimento estudantil e outras efervescências sociais e culturais) têm
a ver com O Sonho é Realidade?
Na cidade de Coreaú, terra natal do autor,
havia (talvez ainda exista) uma casa com sótão que despertava no menino Galba o desejo de superação de conhecer o
proibido, inacessível na sua intimidade, o, desejo de desvendar tudo
considerado inexpugnável (o grifo em itálico – letras inclinadas – indica o
texto do escritor).
Poderia ser a
vocação para a Ciência, a bendita curiosidade que levou nossos ancestrais às grandes
descobertas? Insatisfação com a ordem pré-estabelecida? Busca de sublimação? (O
sótão é, depois do teto, a parte mais alta de uma casa). Sótão leva-nos também
a Carl Gustav Jung no livro Memórias,
Sonhos, Reflexões. Ele também era atraído por um sótão, na infância.
Leiam o livro e tirem suas conclusões.
Rio
Outro objeto do fascínio de Galba Gomes
era o rio Coreaú:
Mergulhar
nas águas do gerava sensação de liberdade e alegria, de bem-estar com a
percepção de ser este um lugar transformador, capaz de propiciar autonomia,
decorrente da vontade inata de buscar afirmação na condição de ser um destemido
e pronto para enfrentar o mundo. Segundo o Dicionário de Símbolos, “o rio
simboliza o fluir das águas e a fluidez das formas, a fertilidade, a morte, a
renovação, a mudança constante. O filósofo grego dizia que não é possível
entrar duas vezes no mesmo rio. A correnteza do rio simboliza a corrente da
vida e da morte”.
Montanha
E montanha? O autor de O Sonho é Realidade
gostava de contemplar, quando menino, em Coreaú, a silhueta da Serra Grande
(Ibiapaba) e já fazia inquietantes indagações:
O mundo vai além daquela serra? Como é o além
daquela serra? Há outras terras e outra gente por detrás daquela serra? Essa
reflexão, sem resposta, significava de maneira empírica e fantasiosa a busca do
sentido do espacial, do temporal, da existência de outras vidas na visão
interrogativa do sujeito ainda criança, visão estimuladora e compositora do
sentido inato dos indivíduos na busca da integração, no mundo e para o mundo.
Essas
palavras precisam de explicação?
Fiquemos, por enquanto, em sótão, rio e
montanha. Campo está incluído nos dois primeiros ou em outros tópicos seguintes
deste comentário. Cidade (Fortaleza), anos 60 e movimento estudantil serão comentados
mais adiante.
Convergências
Conheço o odontólogo, psicólogo e
professor Galba Gomes desde o final dos anos 70 ou início dos 80. Fui
apresentado a ele por um amigo. comum: o jornalista Gervásio de Paula, o qual,
na época, editava jornal da Associação Brasileira de Odontologia (ABO)- secção
do Ceará.
Poderíamos ter-nos conhecido muito antes,
porque temos vários outros pontos em comum. O primeiro deles: sou parente por
afinidade – ou contraparente – do Galba Gomes.
Outras convergências: também morei no
bairro Jacarecanga, estudei no Colégio Cearense, participei do movimento
estudantil nos anos 60. Fomos presos políticos (eu por quatro meses, ele por
três dias, em datas, ocasiões e motivos diferentes).
Para completar: gostamos do Centro de
Fortaleza e fomos filiados, nos anos de 80 e 90, ao Partido Democrático
Trabalhista - PDT.
Temos divergências, aprofundadas e
radicalizadas a partir de 2014. O relacionamento pessoal, no entanto, não foi
afetado. Faço opção, neste espaço, em discorrer apenas sobre as convergências e
a respeito do livro O Sonho é Realidade.
O autor com a revisora do livro Rejane Barros
Contraparente
Segundo
o dicionário Caldas Aulete, contraparente é o “parente por afinidade; pessoa
com a qual o vínculo de parentesco se estabelece em decorrência de casamento
com algum parente direto”.
Descobri recentemente: um primo do Galba,
Edson Gomes, também odontólogo, já falecido, era casado com uma prima minha, a
professora de Música (piano) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Rita
Maria Pereira Gomes. Então somos primos por afinidade.
Colégio Cearense
Outro elo significativo: o Colégio
Cearense do Sagrado Coração (Marista), onde Galba Gomes foi aluno interno do
final da década de 50 a 1960. Estudei ali, de 1963 a 1968, isto é, da primeira
série do antigo Curso Ginasial ao segundo ano do então Curso Científico.
Deixemos Galba Gomes falar sobre o
Cearense em O Sonho é Realidade:
O
Colégio Cearense gerava um impacto forte para os novatos que ali chegavam. O
lugar era bem elitizado, a arquitetura muito bonita, uma quadra de esportes que
causava a admiração da garotada, arquibancada de cimento com quatro lances, era
um mundo novo para todos. Até a água usada era mineral magnesiana, da fonte lá
existente.
A arquitetura permanece a mesma, mas
o Colégio Cearense fechou em 2007, para tristeza de muitos dos seus ex-alunos. O antigo prédio foi preservado (tombado) pelo
patrimônio histórico do município de Fortaleza e do Estado do Ceará. Para garantir
ainda mais a integridade do conjunto arquitetônico seria bom que a União
(governo federal) adotasse idêntica medida. A fonte de água mineral teve de ser
fechada, muito antes do colégio, devido às infiltrações poluentes do lençol
freático de Fortaleza. Uma lástima.
Centro de Fortaleza
Eu e Galba – outra afinidade – somos
admiradores e entusiastas da malha central da capital cearense, hoje desprezada
pelos poderes públicos, empresariado e por alguns setores da população.
O Centro, para a minha geração e a do
Galba, era o ponto de convergência da provinciana capital dos anos 50 e
60. Eu, nascido e criado em Fortaleza,
com algumas passagens pelo Interior do Ceará (Guaramiranga e Palmácia, ambas no
Maciço de Baturité). Ele, natural de Coreaú, sua inesquecível Palma (antigo
nome da cidade da Zona Norte cearense), veio para Fortaleza ainda criança e
descobriu os encantos da capital ainda provinciana. Tornou-se fortalezense de
coração.
Mesmo com a degradação e as opções dos shoppings centers, a área central
continua a povoar o meu imaginário. Anima-me a esperança, talvez sonho irrealizável,
de ver o Centro, principalmente o seu ícone maior, a Praça do Ferreira, voltar
aos seus tempos áureos.
Ninguém melhor do que Galba Gomes
para expressar esse sentimento no livro O
Sonho é Realidade:
A Praça do Ferreira. Nada acontece
nesta cidade que não surja ou repercuta ali. É um lugar que energiza, charmoso,
bonito e privilegiado pelo próprio clima sempre ameno”.
Jacarecanga
Galba Gomes descreve, com rara maestria e
muita sensibilidade, o bairro do Jacarecanga dos anos 60:
Em
1962 mudamos de endereço e fomos morar na Av. Francisco Sá, no bairro
Jacarecanga que possuía uma arquitetura encantadora, habitado por algumas
famílias ricas da época. Tinha casas bonitas, bem estruturadas, um local
organizado e gostoso de morar. Hoje o bairro se descaracterizou coma demolição
de vários de seus belos sobrados.
O escritor relembra figuras e fatos do Jacarecanga
com os quais convivi ou presenciei. Eu morava na rua paralela à Avenida Francisco
Sá, Rua Monsenhor Dantas, continuação da Rua São Paulo, na antiga Vila José
Pinto do Carmo. O início da Avenida Francisco Sá, onde morou Galba Gomes, era
habitado por famílias da burguesia ou alta classe média.
Um dos tipos marcantes era o Clorimel, esquerdista, possivelmente ligado ao PCB, e proprietário de um bar. Eu não tinha muito contato com o Clorimel. Quem era ligado
a ele era outro grande amigo meu, o hoje farmacêutico Francisco Edson Pereira, morador
do bairro naqueles tempos.
Eu frequentava a casa de um irmão do
Clorimel, o Cocibel. Percebe-se que os pais de ambos não foram – digamos –
muito felizes na escolha dos nomes dos filhos: Clorimel e Cocibel... Imaginem!
Galba revive episódio do qual eu lembro
muito bem. A pregação de um pastor evangélico, metido a milagreiro, na Praça Gustavo
Barroso (Praça do Liceu). Atraía multidões, fenômeno comentado em toda a
cidade. O show do religioso durou cerca de uma ou duas semanas, sempre no
início da noite. Deixemos o autor narrar o fato, no qual esteve envolvido o esquerdista
Clorimel:
No início dos anos 60
apareceu um milagreiro charlatão que reunia milhares de pessoas na Praça do
Liceu. Uma noite a molecada pediu emprestada a cadeira de rodas de um portador
de deficiência, vizinho, e levaram o Clorimel na cadeira, bêbado, para obter o
milagre, com o intuito de desmistificar e debochar o charlatão. Quando o
pregador charlatão anunciou que os cegos iriam enxergar, os aleijados andarem,
o Clorimel aos gritos começou a pular e subiu ao palanque onde o milagreiro
anunciou o falso milagre.
Depois do relato do Galba sobre o fato,
deixo minha impressão: ainda hoje eu recordo o nome do “milagreiro”. Era um
pastor evangélico e norte-americano, jovem, talvez não tivesse 30 anos. Falava
em inglês para o público e necessitava sempre da ajuda de um intérprete para
tudo que dizia. Tenho excelente memória e, apesar de o nome não ser citado no
livro, este logo me veio à mente: Morris Cerullo. Pesquisei no Google e Youtube.
Para surpresa minha descobri que o malandro ainda hoje está vivo e continua
a fazer as mesmas presepadas “milagreiras”. Tem 81 anos. É o precursor e
inspirador de canalhas – todos golpistas – do tipo Silas Malafaia, Marcos
Feliciano, pastor Everaldo – e outros enganadores da boa fé do povo simples.
Doidos... Por dinheiro.
Movimento secundarista/golpe militar
Galba Gomes participou do movimento
estudantil desde o início da década, no Liceu do Ceará. Ligou-se, depois, aos
trotskistas da clandestina IV Internacional, sem ser militante, quando era
universitário; eu, secundarista, em 1968 e 1969, militante do, também
clandestino, na época, Partido Comunista do Brasil - PCdoB.
Não foi no conservador, rígido e elitista Colégio
Cearense (Marista) que Galba Gomes deu seus primeiros passos no movimento
estudantil, mas no também tradicional, porém muito mais aberto, Liceu do Ceará:
Ingressar
no Liceu do Ceará em 1960 foi algo de muita significância. Estudar lá
possibilitou a visão crítica com a forma de ver e sentir o mundo, de forma
diferente, crítica. Teve grande valor para formar a personalidade de futuro
militante, na política estudantil, na luta pela melhoria e direito a uma vida
de qualidade e respeito humano.
O inconformismo com as injustiças sociais,
inclusive o racismo, vem, no entanto, de Coreaú, e é contado nessas memórias.
Galba, criança de classe média, já se incomodava com o fato de ver seus
companheiros de brincadeiras, meninos pobres, sem acesso à educação, saúde e até a ima alimentação mais
consistente. Festas para brancos e pretos (ou pardos) no Coreaú dos anos 50
também lhe causavam justa indignação.
O autor escreve, com leveza e
sensibilidade de memorialista, sobre a agitação e a polarização
esquerda/direita do início e metade dos anos 60, que culminaram com a deposição
do presidente João Goulart e a instauração da ditadura militar em 1964.
Pela ótica de Galba chegam-nos pessoas e
episódios marcantes daqueles anos dourados: o CLEC (Centro Liceal de Educação e
Cultura), versão liceísta e
secundarista do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes),
que aglutinava os estudantes universitários em termos nacionais. O CLEC empreendeu campanhas e forjou grandes
lideranças. As refregas dos estudantes do Liceu com soldados do Corpo de
Bombeiros (seus vizinhos) e com a empresa de transporte coletivo do Sr. Oscar
Pedreira, da linha Jacarecanga-Centro (e vice-versa), com os famosos e
inesquecíveis ônibus de cor verde-escura.
Entre esses líderes destaca-se a figura
lendária do Parangaba, cujo nome era Carlos Augusto de Lima Paz, um dos maiores
líderes secundaristas do início dos anos 60.
No movimento secundarista e universitário,
antes de 1964 e até um pouco depois, já se delineavam disputas de influência
entre militantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e as organizações
Juventude Estudantil Católica – JEC -, secundarista, e Juventude Universitária
Católica – JUC que deram origem, um pouco mais adiante, à Ação Popular, de
tendência católico-esquerdista. Galba Gomes nos fala de uma terceira força, a
Juventude Independente do Liceu (JIL), da qual alguns (não todos) se ligariam
depois aos trotskistas, inclusive o próprio Galba Gomes.
A partir de 1966, 1967 e 1968, outra força
de esquerda se tornaria preponderante no Liceu e em quase todo o movimento
estudantil: o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
1968: antecedentes e consequências
Se o início da década de 60 (período que
antecedeu a deposição do presidente João Goulart) foi muito agitado, o ano de
1968 teve muito mais agitação e efervescência cultural. Marcou o auge da
resistência estudantil ao golpe militar de 1964. Por outro lado, aquele ano é divisor
também da repressão da ditadura contra os movimentos populares, inclusive o
estudantil.
O ano de 1965 registra o ingresso de Galba
Gomes na Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). O
contato mais aprofundado com as tendências de esquerda a disputarem a
preferência da massa estudantil universitária: Partido Comunista Brasileiro
(PCB), Ação Popular (AP), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), IV Internacional
ou Partido Operário Revolucionário Trotskista - PORT, a preferida do jovem
estudante de Odontologia.
Aí vai minha primeira – e única – crítica
ao livro: tenho a impressão que o autor procura
minimizar a importância do PCdoB no movimento estudantil (universitário e
secundarista) naquele período. O PCdoB era, em Fortaleza, a principal força
desse segmento em 1968 (com demonstrações de vitalidade já em 1966 e 1967). Como
diria Caetano Veloso em Tropicália, no Ceará, o PCdoB organizava o movimento! Esse fato fica, no entanto, encoberto nas
páginas de O Sonho é Realidade.
Em termos nacionais tal situação era
inusitada, nos anos finais da década de 60. O PCB – Partido Comunista
Brasileiro – havia se retirado do movimento estudantil. No Rio de Janeiro (na
época sede da cidade-estado da Guanabara, cuja capital era a própria cidade do Rio de Janeiro, vizinha do velho Estado do Rio de Janeiro, que tinha como capital Niterói. Imaginem a confusão para os jovens de hoje entenderem isso) e São Paulo, as grandes caixas de
ressonância nacionais, o movimento estudantil era liderado pelas chamadas
Dissidências do PCB (Vladimir Palmeira, do Rio, e José Dirceu, de São Paulo, rompidos com esse partido)
e pela Ação Popular – AP - (Luís Travassos). Os trotskistas, embora tivessem
grandes, aguerridos, respeitados e preparados líderes em quase todas as
capitais brasileiras, não dispunham de nenhuma liderança com a visibilidade
nacional dos nomes citados.
Por que o PCdoB tinha (e ainda tem) tanta
força em Fortaleza?
Dois
motivos essenciais:
1º - Em Fortaleza, os jovens que
discordavam da posição conciliadora do Partido Comunista Brasileiro (PCB) não
criaram grupo do tipo Dissidência da Guanabara (DI-GB) e Dissidência de São
Paulo (DI-SP). Não houve uma DI-CE: Os dissidentes do PCB fortalezenses abrigaram-se, em sua
grande maioria, no PCdoB, que se proclamava legítimo herdeiro e continuador do pai
de todos os PCs: o antigo Partido Comunista do Brasil (PCB. O "do" não entrava
na sigla. Foi entrar depois da criação do PCdoB);
2º - No movimento estudantil, os
militantes do PCdoB, embora adotassem postura radical contra a ditadura
militar, mantinham também uma política “pé-no-chão” no que se refere às
reivindicações específicas dos estudantes: melhoria do ensino curricular e das
instalações das faculdades e colégios (salas de aulas condignas, bebedouros,
etc). Enquanto isso, militantes
trotskistas e até da AP deliravam em grandes elucubrações anticapitalistas, a
pregar a “revolução socialista” ou “proletária”. A massa estudantil – formada por
meros simpatizantes da esquerda e muitos setores apolíticos – preferia o
discurso pé-no-chão do PCdoB.
Omissões
Galba Gomes é muito melhor quando
disserta, narra ou descreve o movimento estudantil do começo dos anos 60, isto é,
antes da ditadura militar. Na parte referente à agitação pós-ditadura,
principalmente o auge, 1968, vemos um Galba cauteloso e pouco detalhista, principalmente
no que diz respeito à disputa entre as tendências de esquerda.
Ao falar da reorganização do movimento
estudantil, no período da ditadura militar, porém antes do Ato Institucional Nº
5 (AI-5), Galba Gomes relata a eleição
do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Ceará
(UFC) em 1966, numa frente de esquerda, quando foi eleito presidente o estudante de
Economia Homero Castelo Branco. Houve ainda eleição dos respectivos diretórios
acadêmicos. Até aí tudo bem.
Refere-se também à eleição de João de
Paula Monteiro Ferreira, aluno da Faculdade de Medicina, à presidência do DCE, em 1967,
com apoio das diferentes tendências do movimento universitário. A eleição de
João de Paula para a presidência do DCE é narrada na página 152 de O Sonho é Realidade, mas o fato de João
de Paula, na época, ser militante do PCdoB, só vem a ser dito apenas na página
162 do livro. Dez páginas depois.
Mais adiante, no capítulo 5, com título 1968: Tendências Ideológicas e subtítulo cisão, o autor, de repente, se torna incisivo e detalhista:
Em março de 1968 irrompe uma dissidência no
DCE e três das tendências ideológicas decidem lançar chapa ao DCE. O PCdoB
lança José Genoino, os Trotskistas lançam Arlindo Soares. A AP (Ação Popular)
Mariano Freitas, narra Galba.
É a
minha ressalva ao livro: o PCdoB – emergente (e já majoritária tendência de
esquerda) no Ceará – elege os presidentes do Diretório Central dos Estudantes
da UFC em dois anos consecutivos (1967 e 1968) e essa dupla vitória passa quase
despercebida nas páginas de O Sonho é
Realidade.
Ressalte-se
ainda que o PCdoB já controlava, em
1968, o Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará (CESC). Era, sem dúvida, a
força hegemônica de todo o movimento estudantil em 1968, ano de sonhos e de
lutas.
Maior importância é dada no livro à eleição
de Inocêncio Uchoa, trotskista filiado à IV Internacional, à presidência do
Centro Acadêmico Clóvis Bevilacqua da Faculdade de Direito da UFC. Diretório
Acadêmico da mais alta relevância, não resta a menor sombra de dúvida, mas
abaixo da magnitude do Diretório Central dos Estudantes (DCE), entidade representativa
de todos os universitários cearenses na época.
Lutas, formatura e o discurso não
proferido
O escritor transporta-nos para outros fatos
relevantes ocorridos nos anos de 1967 e 1968 em Fortaleza: passeata dos 20 mil,
quebra-quebra do USIS (United States Information Service), escritório ligado à
embaixada dos EUA no Brasil; repressão policial, os Congressos da UNE de 1967 (Valinhos-SP,
do qual Galba foi participante) e o de Ibiúna, também em São Paulo, onde cerca
de mil participantes foram presos pela repressão.
Chegam-nos também, pelas páginas de O Sonho é Realidade, o auge da repressão
e do obscurantismo que se abateu pelo País com a decretação do Ato
Institucional Nº 5 (AI-5), o golpe dentro do golpe.
A truculência do AI-5 bateu forte em cima
de Galba Gomes e de todos os concludentes da UFC: ele seria o orador
oficial da solenidade de colação de grau que se realizaria na Concha Acústica
da UFC. Por se
recusar a modificar trechos do discurso que seria proferido na sessão solene,
peça oratória de teor moderado, mas incisivo e fiel aos seus princípios do orador, a
festa foi cancelada.
O discurso só viria a ser proferido, pelo mesmo orador, 30 anos depois, no dia 12 de dezembro de 1998, em
memorável solenidade na mesma Concha Acústica, sob a brisa sagrada e benfazeja da liberdade, nas palavras de Galba
Gomes.
Episódios tragicômicos
O autor nos oferece de brinde, talvez para
aliviar leitura de época tão agitada,
episódios por ele chamados de trágicos e jocosos: machismo
na esquerda (no qual revela mais o puritanismo dos militantes do que o
machismo), detenção na DOPS (sua primeira prisão), Antonio Morais (o famoso
vereador 203 da campanha de 1974), o episódio da comuna cearense da Reitoria (ocupação daquele espaço pelos estudantes em 1968), conhecendo Jean Paul Sartre,
Simone de Beauvoir e Célia Guevara.
Sobre a
visita do casal Sartre-Simone de Beauvoir a Fortaleza, o escritor comete um
engano: diz que o fato ocorreu em 1962. Este jornalista, que já foi ombudsman do
jornal O Povo, não resiste e corrige: a visita dos dois franceses famosos
ocorreu dois anos antes – 1960 – e mereceu destaque da imprensa nacional.
Sartre e La Beauvoir visitaram cerca de dez cidades brasileiras, inclusive Fortaleza.
Intervenções brilhantes
O Sonho é
Realidade vem intercalado com artigos de pessoas companheiras da trajetória de
Galba Gomes, além da apresentação de João de Paula Monteiro, prefácio de
Leonardo Pildas e posfacio de Urânia Almeida Gomes (esposa do autor). Temos
ainda colaborações de Wilson Gomes Belchior Fernandes, Raimundo Leopoldo Meneses
Neto, Eduardo Gomes Machado, Antonio Soares Brandão, Pedro Albuquerque, Mércia
Pinto, José Arlindo Soares, Inocêncio Uchoa e Sérgio C. Buarque. É o que se
pode chamar de intervenções literárias.
Todos
brilhantes, mas o texto que me chamou mais atenção, pelo tom emocional e muito inteligente, foi o de Mércia Pinto: Em
Dezembro de 1968: fica comigo esta noite.
A noite do AI-5. Mércia descreve com perfeição
o ambiente da tragédia dentro da tragédia, o golpe dentro do golpe. Nada mais evocativo
do que lembrar o samba-canção Fica Comigo Esta Noite, sucesso de Nelson
Gonçalves, lançado em 1961 e que perdurou por umas duas décadas, principalmente
nos ambientes boêmios.
Percalços
O recém-graduado opta por fazer o mestrado
em Odontologia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1969. Um risco até para quem, a exemplo
de Galba, recusara o caminho da
clandestinidade e da luta armada contra o regime ditatorial, mas que possuía
antecedentes políticos. A capital paulista vive muita tensão: o auge da
guerrilha urbana e também da repressão feroz, dos assassinatos e das torturas a
presos políticos.
Alcança o objetivo
e retorna a Fortaleza. Conhecido na capital cearense, sua cidade adotiva, é
aqui que ele enfrenta o estigma de opositor da ordem instaurada em 1964 e
reforçada em 1968.
Começa a
trabalhar num consultório de odontologia. Chega a ser preso e interrogado pelo
simples fato de seu cartão de visitas ter sido encontrado em poder de um preso
político. Vive três dias de muita angústia, mas é libertado. Os percalços não
param: é impedido de exercer a profissão no Sindicato dos Bancários.
É excluído
do concurso para professor do Curso de Odontologia da UFC, mesmo tendo obtido
vantagem na prova de títulos, escrita e didática. Submetido a assédio moral (você
não deve fazer a prova, não tem chance) é reprovado na aula-experimento para o
qual fora sorteado.
Antes, em 1968, ainda estudante de
Odontologia, fora demitido do Colégio Justiniano de Serpa, onde lecionava
Biologia. Óbvios motivos políticos.
Vitórias
Galba não
desiste. Consagra-se na profissão que abraçara nas lutas da década de 60. Além
de odontólogo competente e autor de trabalhos científicos, destaca-se como
líder da categoria: na presidência da Associação Brasileira de Odontologia-CE e
do Conselho Regionl de Odontologia (CRO).
Retoma outro antigo sonho: o de professor. Exerceu o cargo no Curso de
Odontologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), do qual foi coordenador. É
mestre em Psicologia pela Unifor. Atuou ainda no serviço público, como
secretário-adjunto de Saúde
No posfácio de Urânia de Almeida
Gomes, esposa de Galba, uma definição do autor:
A integridade moral, a honestidade em relação a tudo e a todos, a
fidelidade a seus conceitos, continuam os mesmos. Em relação aos amigos, são
intocáveis e a eles tem toda a dedicação. Sua personalidade o tempo apenas
lapidou.
Este blogueiro assina embaixo e faz apelo: que venham mais
livros.